CHAFARIZ DO MUNDÉU – Por Neila Barreto – Primeira parte
A história da fundação da cidade de Cuiabá nasce junto com as suas águas jorrantes ou invisíveis. Na Praça Alencastro, centro da cidade de Cuiabá, um chafariz de repuxo foi inaugurado em 1882, pelo Presidente Alencastro. [1] Assim, “o mesmo presidente que construiu a Praça Alencastro fartamente arborizada, construiu uma fonte de água dotada com repuxo, canteiros de flores, cercado por muretas e gradil confeccionado com os canos de 2000 espingardas velhas do Arsenal de Guerra, do bairro do Porto” [2], cuja fonte era tradicionalmente usada pela população das ruas centrais para a lavagem do São João, por ocasião das suas festas.
Chafariz da Praça Alencastro no detalhe, lado esquerdo do coreto, no jardim, no chão, construído em 1882, no governo de José Maria de Alencastro. Arquivo particular.
Além disso, o Plano de 1777 indica sete fontes contornando a vila: a do Arnesto,[3] a de Maria Corrêa, a do Mundéu, a junto de Feliciana Gomes, a junto a Manuel da Silva, a da Mandioca e a detrás da igreja. A do Arnesto, mais ou menos onde hoje está o Morro da Luz; a de Maria Corrêa seria a da (no sentido de rua da margem esquerda do córrego Prainha); a do Mundéu seria na parte leste do atual terminal Bispo; as duas juntas – de Feliciana e Manuel – e a da Mandioca estavam as três no circuito da atual Praça do Conde de Azambuja; e a detrás da igreja, ou da Matriz; era na atual Isaac Póvoas, fronteira à atual Praça Rachid Jaudy (e nos séculos XIX e XX passou a ser a Cacimba do Soldado). [4]
Essas sete fontes podem, porém, ter sido oito, pois onde hoje está a Santa Casa da Misericórdia parece ter existido uma oitava fonte que, na segunda metade do século XIX alimentaria o tanque do largo da Conceição. Essa possibilidade decorre de pequenos indícios gráficos do “Plano” de 1777 e da planta de 1786.
IHGMT. “Plano da Villa do Cuyabá…”; 272 – na Capª. De Matto groço… 1777” original manuscrito pertencente à Casa de Ínsua, Coord.: João Carlos Garcia, A Mais Dilatada Vista do Mundo, Comissão Nacional Para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Portugal, Cuiabá, 2004.
Segundo Rosa (1996, pp. 134-135):
As sete Fontes da Vila Real referendam a adequação do sítio urbano às seculares recomendações lusitanas quanto “as boas águas”. O Rossio da Vila era praticamente delineado pelos rios Cuiabá, Coxipó Mirim e Coxipó Açu. (…) Com as sete Fontes ficava a Vila ponteada de aguadas.[5]
IHGMT. “Plano da Villa do Cuyabá…”; 272 – na Capª. De Matto groço… 1777” original manuscrito pertencente à Casa de Ínsua, Coord.: João Carlos Garcia, A Mais Dilatada Vista do Mundo, Comissão Nacional Para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Portugal, Cuiabá, 2004.
As fontes da Vila Real delimitavam a área mais densamente edificada da vila. Durante cerca de um século e meio elas foram fundamentais, para abastecer com água potável os moradores da vila e da cidade.
Os mananciais de água potável da margem esquerda do Prainha, mais escarpada, tornaram-se, a partir de fins do século XVIII, decisivos fornecedores de água potável à vila, inclusive por meio de aquedutos.
Do ponto de vista do presidente da Província, as melhorias eram enormes. Em dezembro fez público agradecimento aos empresários por terem à sua custa fornecido água à capital durante três meses, para minorar os males da grande seca que então assolava a Província. A 7 de janeiro de 1883 os empresários Frick e Zanotta foram definitivamente pagos pela Província.[6]
2 – O Espaço Urbano do Mundéu e da cidade
A palavra Mundéu significa armadilha de caça. No sentido figurado também poder ser qualquer casa ou coisa que ameaça cair. “Dizia-se cair no mundéu; ser apanhado na ratoeira. Havia uma música popular que se cantava antigamente: Na rua do mundéu/ Tem caiaia, E uma veia de cangaia…[7]
O Mundéu, por exemplo, era, pelo menos desde os anos de 1730, uma parte efetiva da vila: Nos primeiros anos 1730 o Mundéu era bairro da vila, na bocaina, entre os atuais morros Seminário e Luz (ROSA, 2003, p. 29).
Sua localização na cidade de Cuiabá foi assim delineada:
(..) rasgando a colina da Prainha, para comunicar a cidade com o bairro da Caridade, a antiga Rua da Misericórdia, hoje Rua Coronel Peixoto, desce em declive sinuoso, morrendo no Velho Largo da Conceição, a hodierna Praça do Bispo D. José. Ladeando o início da Ladeira da Misericórdia, defrontam-se bem alto a Santa Casa da Misericórdia, já sesquicentenária e o Seminário da Conceição, cujo primeiro centenário ocorreu a 7 de dezembro de 1958, (…) Na base da rampa do outeiro da Conceição, dominando as cajazeiras ornamentais (…) bela espécie de ximbuveiras branca, rico exemplar da mata mato-grossense, ostentando frondosa copa rendada, (…) cujas galhadas saltitavam mariquitas amarelas, bem-te-vis e sanhaços (…) ··.
Por que então o Mundéu tinha, cento e cinqüenta anos depois, número tão pequeno de penas domiciliares instaladas? Questão intrigante: 14 anos antes fora construído chafariz na Praça Bispo Dom José, obra que inclusive implicou a construção de condutos (alguns chegam a falar em aqueduto) (MENDONÇA, 1977, p. 28) mais ou menos extensos. Que fatores provocavam essa diferença entre o abastecimento de água potável governamental público e o domiciliar?
Esse Mundéu – Mundeuzinho que ficava no antigo Largo da Conceição, hoje Praça Bispo D. José embelezava a cidade e nas lembranças era assim descrito:
(…) O Largo da Conceição, quadrilátero irregular do URBANISMO garimbeiro, limitava-se com o ribeirão Prainha, cujas águas começavam a diminuir com a servidão pública dia a dia aumentada, á não mais se prestando ao consumo da população, tal a sujeira que descia dos quintais das margens habitadas. [8]
Nos anos de 1850 a cidade de Cuiabá cresceu em torno de dois novos eixos de expansão: a sudeste, pelo caminho que ia ao Coxipó; a noroeste, buscando o bairro lava – Pés, no além da Boa Morte (BRANDÃO, 1991, p. 28).
Entre 1853 e 1890, dez espaços de culto católico pontuavam a cidade de Cuiabá: a Matriz ou Sé, a capela de Nossa Senhora do Bom Despacho, a igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, a igreja de São Gonçalo, a igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, a capela do Senhor dos Passos, a capela de Nossa Senhora da Misericórdia, a capela de São João dos Lázaros, a capela do Palácio Episcopal e o oratório do Palácio Presidencial (PERARO, 2001, p. 82).
No ano de 1860, boa parte das ruas centrais da cidade era descrita nos seguintes termos:
(…) quase todas calçadas de pedra cristal, que quando lavadas pelas chuvas tornam-se muito asseadas. Os habitantes, porém, cuidam pouco de sua limpeza e o fiscal da Câmara, relaxando suas obrigações, consente que o córrego da Prainha e seus adjacentes sejam os lugares do despejo público (PERARO, 2001, p. 103).
Durante os anos de 1870 foi instalado o Tribunal da Relação em 1874, na Rua 11 de Julho; no ano seguinte, a Caixa Econômica e Monte de Socorro, em sobrado em frente ao palácio do governo. [9]
Com fachada voltada para o largo do Ipiranga, [10] um mercado público do primeiro distrito ou da Sé centralizava o abastecimento da cidade. No porto ou segundo distrito, ou freguesia de São Gonçalo de Pedro II, outro mercado público desempenhava as mesmas funções. Mais tarde esse mercado foi transformado em mercado do peixe, com características arquitetônicas até hoje preservadas, graças ao seu tombamento e à sua revitalização como Museu do Rio Cuiabá.
[1] – Já em meados do século XX esse chafariz foi destruído durante a administração do prefeito Vicente Emílio Vuolo.
[2] – NDIHR – UFMT. Jornal do Comércio de 28 de abril de 1904, Cuiabá, 1904.
[3] – Corruptela de Ernesto.
[4] BARRETO, Neila Maria Souza. Água: gota da vida – abastecimento e uso no espaço urbano de Cuiabá (1790-1886). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, 2005. Cuiabá, 25 de julho de 2005.